O avesso da pele não é o primeiro livro de Jeferson Tenório e, a julgar pela repercussão, dificilmente será o último. Não que exista aqui a pretensão de brincar de Deus para tentar adivinhar o futuro, mas a escrita de Jeferson, um carioca criado no sul do Brasil, é rica e tem repertório para muito mais: mais obras, mais histórias, mais diversidade para o mercado editorial de língua portuguesa.
O autor é o primeiro patrono negro da Feira do Livro de Porto Alegre e já é considerado um nome importante no currículo voltado para a formação de leitores.
O avesso da pele, editado no Brasil pela Companhia das Letras, talvez seja um pouco diferente dos outros livros que tratam do mesmo tema, apesar de ser uma obra autobiográfica como tantas outras.
O avesso da pele e o diário íntimo
O livro não é extenso, mas a profundidade emocional é imensa. Como um grande inventário particular que tece as peças da colcha biográfica de Pedro, que é quem nos conta a história: a sua própria através da vida de seu pai. A busca de Pedro por Henrique atravessa o leitor que se vê mergulhado na narrativa rica em identidades e ecos de existência.
“Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te recupero.”
O leitor fica sem saber se o que é narrado é factual ou apenas a necessidade de um jovem de contar o pai falecido. A necessidade de se preservar para além das estruturas de uma sociedade racista que irá moldar as experiências dos sujeitos daquela história, como se só o avesso da pele pudesse estar em pé de igualdade com a sociedade, só ele pode dizer as verdades, sendo esse avesso tão igual e ao mesmo tempo tão diferente para carregar as nuances de cada
experiência.
“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.”
O tom de diário íntimo enriquece ao conjugar espaços junto de outros recursos como marcas de expressão que irão dar o tom do relato. Porém, acima desses recursos está a voz do narrador que parece construir retratos recortados do banal cotidiano, apresentando um microcosmos que fala por si.
Fica claro que em O avesso da pele o relato íntimo feito para desconhecidos é um molde de pacto de leitura: acontece – em teoria – um desnudamento de si, uma denúncia da vida, onde o esperado é que o leitor vá entender, acolher e respeitar.
A obra é recheada de referências culturais e o compilado é diverso demais: Luiz Melodia, Júlio Cortázar, Kafka, Cervantes, James Baldwin, Virginia Woolf, Toni Morrison e Dostoiévski (Esse último, aliás, é importantíssimo na narrativa e não será nenhuma surpresa se algum dia uma pesquisa acadêmica relacionar o famoso Crime e Castigo com O avesso da pele por aí).
A mescla da autobiografia com uma investigação destemida da figura paterna resultou num livro poderoso e um romance de resistência. Faz sentido que tenha sido indicado em vários prêmios importantes como o Oceanos.