Gabinetes de leitura: um pouco de história

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Muito se ouve falar sobre a história das livrarias e das bibliotecas, mas e os gabinetes de leitura? Será que conhecemos um pouco da história desses espaços que apesar de terem tido uma vida breve foram muitos e extremamente populares?

A história dos gabinetes de leitura se relaciona diretamente com a própria história do livro, uma vez que os mesmos se apresentam como ambientes fomentadores da leitura, da prática social de discussão literária e da popularização dos livros. Um espaço físico, ainda que público, apto a receber os interessados em literatura sem a sobriedade muitas vezes exigida pelas bibliotecas. Tais bibliotecas, advindas dos modelos religiosos, na maioria dos casos ainda privava o leitor comum do acesso às obras. Diante deste fato, os gabinetes de leitura se mostram como um tear de possibilidade múltiplas e concretas não só para a história do livro, mas também para a história das indústrias culturais, por exemplo, e a relação de consumo da sociedade moderna. Apesar de terem tido uma vida breve, os gabinetes tiveram ascensão meteórica e são importantes objetos de estudo nos mais variados campos da humanidade.

Gabinetes de leitura: vamos falar um pouco sobre história do livro?

Em meados dos séculos XVII e XVIII o mercado livreiro era um modelo de negócio em ascensão, pois editava e distribuía também folhetins e periódicos, além do próprio livro. Apesar disto, o livro era considerado por muitos um artigo de luxo, com custos de produção elevados. Com isso, os livreiros vislumbraram na opção de disponibilizar um livro, sem a necessidade de compra ou posse, uma saída simples para fazer o produto circular e pagar os seus custos a médio e longo prazo.

O termo gabinete, como o conhecemos hoje na língua portuguesa, possui as suas raízes mais prováveis no léxico francês, cabinet (Definição extraída do Dictionnaire de l’académie Française- Septième Édition – 1877), utilizada para referenciar cômodos pequenos ou particulares de uma casa, pequenas salas reservadas para os mais diferentes fins com nomenclaturas como gabinetes de leitura, gabinetes de descanso, laboratório ou gabinete de trabalho. O termo se desdobra em diferentes significados, mas o fato é que apenas as casas mais abastadas possuíam os seus gabinetes, logo, depreende-se que o hábito cultural da leitura e da pesquisa era um privilégio de quem poderia pagar pelos seus livros.

Já na língua portuguesa, a expressão vai além do domínio privado, uma vez que é possível encontrar ainda hoje o termo utilizado para designar repartições públicas, como o gabinete do senador, ou o gabinete do prefeito.
Entretanto, casas burguesas ou não, os gabinetes eram sinônimos de civilização, cultura e progresso e logo passaram a ser também pensados como ambiente públicos onde era possível assimilar novos conhecimentos e se envolver em debates políticos e filosóficos. A prerrogativa do ato de emprestar livros surge de fato com os gabinetes de leitura, ou as circulating libraries (bibliotecas circulantes, em tradução livre), criadas na Inglaterra, no século XVIII. Acredita-se que o modelo inglês foi o grande responsável pela disseminação do modelo de gabinetes de leitura reproduzido pela França, Portugal e Brasil, para citar apenas alguns exemplos. Ainda que nos países europeus eles possuíssem um caráter editorial e cultural mais avançado, e nos países da América do Sul os gabinetes surgissem como instituições de viés filantrópico e social com funções que iam além do empréstimo de livros e debates literários.

O modelo inglês foi amplamente procurado pelos trabalhadores egressos das zonas rurais e interessados em consumir informações e lazer nas grandes cidades, e posteriormente foi extremamente beneficiado pela produção em massa e a baixo custo dos jornais, periódicos e folhetins. No entanto, foi a França um dos países mais entusiastas da instituição conhecida como gabinetes de leitura e foram diversos os fatores que, juntos, contribuíram para o sucesso da empreitada.

À época, o país atravessava uma grande transformação nos modelos do sistema educacional, o que contribuiu principalmente para o grande número de alfabetizados, mas não só isso. Como num efeito “bola de neve”, as mudanças no sistema de ensino contribuíram para o crescimento do público leitor e a pluralização de novas linguagens para o já antiquado modelo de consumo do livro. Somados a isso encontramos a profissionalização do ofício de escritor, os ideais iluministas em alta e os horários flexíveis praticados pelos gabinetes de leitura. Este detalhe, talvez tenha sido o mais importante para tornar o gabinete um local popular, uma vez que as bibliotecas públicas possuíam um horário de funcionamento mais restrito, os gabinetes de leitura abriam e fechavam em horários mais convenientes ao público, e normalmente fechavam mais tarde.

No século XIX, durante o período da Restauração, os gabinetes eram o modelo de negócios ideal para equilibrar o alto custo do livro com a ávida procura dos leitores, que por valores módicos, adquiriam acesso aos jornais, folhetins e livros por um período de tempo. Apenas em Paris, nesta mesma época, foram catalogados em torno de 520 gabinetes de leitura. O apogeu dos gabinetes se deu durante o reinado de Luís XVIII, e o que conferia destaque e prestígio a um gabinete muitas das vezes era o seu catálogo, que podia ou não conter revistas e livros estrangeiros. A história dos catálogos dos gabinetes de leitura franceses e portugueses é um tema muito rico e que contribui para a compreensão completa deste momento do mercado editorial.

Numa breve contextualização social, é possível notar que os estabelecimentos muitas vezes eram geridos por pessoas mais humildes e não necessariamente burgueses ou intelectuais com uma boa situação financeira. Isto se deve ao facto de que abrir um gabinete de leitura tinha um custo relativamente baixo, apesar do futuro proprietário necessitar de documentação completa para começar o negócio. Documentos como antecedentes criminais e de boa conduta, um atestado assinado por, no mínimo, quatro livreiros, que garantiam a capacidade do requerente e uma taxa sobre o espaço locado, eram apenas alguns dos requisitos. O custo baixo, aliado a uma necessidade de ser um cidadão “correto” perante as leis e a sociedade, fez com que os gabinetes fossem estabelecimentos geridos em sua maioria por viúvas, militares reformados, funcionários públicos do baixo escalão e pequenos comerciantes, por exemplo. Para as mulheres, em especial, os gabinetes de leitura eram uma boa fonte de renda que não trazia problemas: socialmente aceitável e de pouca exposição pública. Na maioria das vezes, a melhor solução encontrada por muitas viúvas.

Entretanto, a popularidade dos gabinetes acabou por atrair também atenções indesejadas. Os livros considerados proibidos possuíam livre circulação nos inúmeros gabinetes de leitura e eventualmente tal prática passou a ser um alerta para a polícia. Os livros, chamados de “livros sediosos”, eram inerentes ao mercado livreiro e a atuação dos livreiros, que em muitos casos atuavam também como caixeiros-viajantes, apenas facilitava tal prática, com as vendas e viagens para as cidades na fronteira da França. Diante desta prática, não eram poucos os livreiros denunciados e considerados subversivos pela polícia, que sofreram perseguições, apresentaram resistência às proibições e muitos acabaram por fechar as portas.

No panorama geral dos gabinetes de leitura, principalmente nas cidades onde a sua repercussão a nível social e político foi tão importante, cabe ressaltar o momento onde a instituição passou a sofrer as consequências diretas da revolução industrial e do novo modo de publicação e consumo de literatura. Os jornais passaram a ser impressos com mais regularidade, as estradas e ferrovias diminuíram o tempo de entrega de periódicos e informações e os folhetins ganharam força e status de colecionador, a um baixo custo. Isto é, era usual que uma família colecionasse todos os números de um folhetim para ter a história completa de um romance, por exemplo, em casa. A partir de 1846 os gabinetes de leitura começaram a fechar aos poucos as suas portas e com o tempo, apenas os que possuíam um acervo mais completo e reputação ilibada, foram transformados em bibliotecas públicas, tal e qual os modelos brasileiros alguns anos depois.

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