“O mercado editorial precisa descolonizar-se”

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Conhecemos o artigo da Layla Mohamed no site The Bookseller, referência para o mercado editorial britânico. Conversamos com ela e nos foi autorizado traduzir e publicar o material. Apesar de voltado para um mercado editorial específico, o assunto da descolonização é urgente em um ambiente cultural e literário. Entendemos que criar comitês de “diversidade e inclusão” não é o suficiente para tornar o mercado um espaço democrático.

O mercado editorial precisa descolonizar-se

Layla Mohamed
Débora Muramoto (trad.)

O movimento de protestos, insurreições e ações diretas que emergiram pelo mundo após a morte de George Floyd adentrou os escritórios das indústrias criativas. O mercado editorial, grande representante desse tipo de indústria, tem absorvido os discursos de “diversidade e inclusão”, caros a nós que integramos o grupo das minorias e ao mesmo tempo trabalhamos nessa indústria.

Enquanto convites à reflexão têm sido feitos, listas de leituras antirracistas têm circulado e o mantra “nós faremos melhor” tem ecoado nas falas de nossos amigos editores brancos, não está claro o porquê de se esperar qualquer mudança significativa de uma indústria que passou décadas negligenciando o problema da diversidade.
É difícil olhar para essas declarações de apoio como qualquer coisa além de um “espírito de época” performativo de uma indústria interessada em apresentar-se como bem-intencionada e socialmente consciente, que não deseja despojar-se de suas raízes colonialistas.

O que a “inclusão” atualmente concebida nessa indústria oferece de fato a pessoas negras? O mercado editorial não precisa se diversificar; precisa descolonizar-se.
De todas as indústrias criativas, o mercado editorial é o mais explicitamente imperialista. Uma carta aberta da Associação de Editoras, em 2018, argumenta, sem ironia ou conhecimento da sua própria história colonialista que, “O mercado editorial do Reino Unido é uma referência internacional e um pilar da influência cultural e econômica britânica.” Livros sempre foram uma ferramenta de propaganda importante e o fluxo de escritas e informações do ocidente para o oriente tem sido central no projeto colonial.

Pouco mudou até hoje. Editoras multinacionais ainda trabalham com base em uma abordagem explicitamente colonial; elas distribuem livros adquiridos no Reino Unido onde quer que tenham direitos autorais, mas raramente um livro publicado por uma divisão da África do Sul ou da Índia seria selecionado por um editor-chefe britânico. Os poucos livros que conseguem passar pelos obstáculos ideológicos que fundamentam ideias de opressão, empurram uma narrativa única e alimentam um retrato caricatural de pessoas do sul global.

As bases do mercado editorial são brancas, masculinas e de classe média, e uma simples olhadela à demografia de uma editora britânica branca convencional torna claro como essa indústria ainda está amarrada a essas raízes, embora hoje existam mais mulheres. Uma pesquisa recente revelou que somente 13% dos entrevistados, identificados como negros, asiáticos e minorias étnicas (“BAME”, na sigla em inglês), e que um número desproporcional de entrevistados eram do Leste Asiático e frequentaram escolas privadas.

Isso criou uma indústria que não só mira integralmente em um tipo de grupo alvo como se recusa a abraçar a diversidade inerente a ela mesma, quanto mais considerar a diversidade que existe externamente. Um editor me informou que livrarias julgam que livros de interesse são baseados em resenhas de jornais escritas por pessoas brancas e de classe média e selecionados por editores literários que acreditam que seus leitores não se interessariam por livros de autores africanos por serem de um nicho muito específico. Enquanto os guardiões da indústria insistirem nessa perspectiva elitista e de supremacia branca, onde somente narrativas brancas são dominantes e o restante é relegado a um gueto literário (salvo miraculosas exceções apontadas eventualmente como provas cabais da diversidade do mercado editorial), essa situação permanecerá.

Aos livros de escritores negros que conseguem publicar no mercado editorial britânico dominante, aquele leitor branco de classe média ainda é o público alvo. Dizem a esses escritores que o seu trabalho não é suficientemente universal, um eufemismo para “o seu trabalho não centraliza a branquitude”, o que geralmente significa que narrativas sobre personagens com o tom de pele escuro carregam identidades que provocam dor e angústia.

De maneira similar, antologias sobre imigrantes, homens negros e mulheres muçulmanas crescem, todas explicando, involuntariamente, a outridade para a audiência branca. Essas antologias também provam que há uma abundância de escritores talentosos nas margens e ainda sim, a única forma para vários desses autores serem publicados é dentro de uma coleção com 20 outros escritores, escrevendo sobre experiências de racismos ou outros “ismos”. Mais uma vez, um editor me revelou que quando escritores negros são promovidos pela mídia, eles são invariavelmente publicados por grandes ou médias editoras que estão sempre no primeiro patamar desse universo. Enquanto o crescimento da visibilidade de escritores negros passa a impressão de um sinal de progresso em uma indústria que se move lentamente, é importante notar que essa representatividade não é o mesmo que descolonização, pois a produção de uma escrita descolonizadora não centraliza a branquitude e nem tenta se fazer elegível a um leitor branco imaginário.

Nas palavras de Toni Morrison, “Quando eu escrevo, eu não traduzo para leitores brancos… se sou específico, e não explico demasiadamente, então, qualquer um pode me ouvir.”

Colocados esses problemas profundos da indústria editorial, foi desapontador ver crescer as conversas em torno da hashtag #PublishingPaidMe1, e um foco em comparar avanços na relação de trabalho com os autores. As disparidades raciais relativas a esses avanços são claramente problemáticas, mas obscurecem o debate maior e necessário sobre o sistema que provê esses avanços e a estrutura econômica da indústria como um todo. As editoras seguem um modelo de capital de risco (sem retorno exponencial), com editores investindo (“apostando” seria mais coerente com a realidade) em um rol de livros, sabendo que a maioria falhará para atingir um nível satisfatório de ganhos e esperando por um acerto que banque todo o resto. O anseio para encontrar o próximo sucesso de vendas levou a uma espécie de “corrida armamentista” por novidades, beneficiando muito mais escritores brancos a escritores negros, como temos visto, enquanto, simultaneamente, diminuem os salários daqueles que trabalham nessa indústria.

Essa questão do salário é uma das maiores barreiras para a entrada de pessoas negras nessa indústria, particularmente aquelas com histórico de trabalhadores. Não há vantagem em encorajar pessoas negras a adentrar uma indústria que não sustentará a sua permanência ali e aí está o porquê de a maior parte da diversidade na indústria ser limitada a posições iniciais, com pessoas que muitos raramente ficam tempo o suficiente para fazer o progresso necessário. As rotas para o progresso nessa indústria são lentas e arbitrárias, com poucas pessoas encaminhando-se para posições mais ao topo. A maioria depende economicamente da família ou de parceiros e parceiras que recebem melhores salários para que, assim, compensem os salários baixos do mercado editorial; mas, para pessoas negras, geralmente é o contrário. Quando aqueles que cresceram em lares com menores rendimentos começam a ganhar algum dinheiro, a sua renda é parcialmente reinvestida na família. Para filhos de imigrantes, isso geralmente significa enviar dinheiro para a família que está no exterior. Dentro dessas circunstâncias, não é surpresa que profissões como advogados e médicos sejam tão altamente valorizadas nessas comunidades, em detrimento de carreiras relacionadas à arte.

Trabalhar no mercado editorial como uma pessoa de cor é também uma experiência psicologicamente prejudicial, especialmente para meus colegas que trabalham em editoras brancas: negros, asiáticos e outras minorias étnicas das redes de editoras das quais eu faço parte estão exaustos porque seus ambientes de trabalho perpetuam rotineiramente micro e macroagressões.

A contínua falta de diversidade no mercado editorial não é uma aberração ou produto de um sistema falido; faz parte da sua lógica quando alguém leva em conta os princípios que consolidaram essa indústria e o seu propósito como ferramenta de imperialismo cultural. É por isso que nenhuma quantidade de escritórios, reuniões ou iniciativas para a diversidade foram capazes de trazer uma mudança transformadora para essa indústria. Para editores mais velhos como Margaret Busby, Verna Wilkins, Ellah Wakatama, Elise Dillsworth, etc, as últimas falas sobre diversidade e inclusão devem soar exasperadamente como um “déjà vu.”

Com a escrita negra fazendo história no Reino Unido, ocupando as listas de bestsellers, é imperativo que nós não deixemos essas vitórias simbólicas e efêmeras obscurecerem a realidade da indústria. A representatividade é somente o início, pois os fundamentos desse sistema precisam ser reformulados. Reformas que atualmente não trabalham no combate à alienação, reforçam e legitimam esses sistemas existentes. Quando clamamos por representatividade, o que isso alcança quando as pessoas que nos representam alimentam e validam esse sistema? Enquanto nós somos vistos confraternizando com a mobilização cínica do Partido Conservador a respeito da representatividade de negros, asiáticos e minorias étnicas? É contraintuitivo esperar dessas representatividades um desmantelamento que venha de dentro, quando trabalhar dentro do sistema significa trabalhar por seus objetivos imperialistas, ao custo da sua saúde mental individual.

Portanto, se iniciativas pela diversidade têm sido superficiais e a verdadeira inclusão tem se mostrado impossível sem uma reforma ideológica e econômica do mercado editorial, onde ficamos diante de toda essa discussão? Em vez de confiarmos em uma indústria ainda enraizada em uma infraestrutura de supremacia branca para alcançarmos a mudança, o ônus está nas pessoas negras em construir a sua própria infraestrutura, arrumar a sua própria mesa, onde elas possam ser donas dos meios de produção em torno da edificação de suas próprias narrativas, tornando-as vitoriosas.

Nós já temos exemplos como Cassava Republic Press, Jacaranda, Hope Road, OwnIt, Peepal Press, a maioria editoras cujas donas são mulheres que precisam do nosso apoio, energia e recursos para assegurar a sua sustentabilidade e sucesso comercial. A existência dessas empresas é um lembrete que a mudança que precisa acontecer nessa indústria é referente ao seu sucesso comercial, é a sua descolonização e não a implementação de uma diversidade e inclusão superficiais.

A descolonização do mercado editorial requer mais editoras negras e de minorias étnicas, trabalhando em diálogo com editoras no Sul e para além da diáspora negra. Isso requer de nós o deslocamento de um foco em livrarias para uma estratégia de vendas que nos leve a encontrar o nosso público onde ele vive. As livrarias no Reino Unido não são um espaço acolhedor para negros e minorias e para a classe trabalhadora, e não podem ser a chave para se alcançar o público, a não ser que elas estejam preparadas para descolonizarem-se. Precisamos, preferivelmente, encontrar formas novas de vender diretamente para a comunidade, como tem sido feito com sucesso por comerciantes pequenos como a BookLove, que vai a escolas e creches, bem como em mercados locais a fim de encontrar aquele público elusivo, porém esperançoso, que a indústria ignorou. Precisamos também nos distanciar da mídia dominante e encontrar métodos alternativos para criar o interesse pelos nossos livros.
Diversidade e inclusão não funcionaram. É tempo de despir-se e descolonizar-se.

1 NDT: Em português pode ser traduzido como “O mercado editorial me pagou”

Layla Mohamed é assistente editorial da Cassava Republic Press. É palestrante no Africa Writes e editou A Small Silence de Jumoke Verissimo, que foi pré-selecionado para o prêmio RSL Ondaatje de 2020 

Artigo original aqui

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