“Eu, Tituba, bruxa negra de Salem” começa com um estrondo: “Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desprezo.” Maryse Condé avisa logo no início da obra que Tituba esteve presente durante o processo de escrita da obra, que ajudou a conduzir o fio da história.
Se Tituba esteve ou não presente? Não temos como saber, mas não duvido que sim. A narrativa é humana e vemos a bruxa negra errar e acertar, falar de amor, dor e prazer sem restrições, como falam de sentimentos e vivências aqueles que já passaram por aqui e tem na própria experiência de vida milhares de ensinamentos.
A histórias das bruxas de Salem ficou famosa, virou livro, virou filme, a cidade mudou de nome para evitar o estigma, mas da vida de Tituba pouco se sabe, pouco de retratou. No livro mais famoso, de Arthur Miller, nem sinal da bruxa. O nome dela é encontrado nos registros dos julgamentos e a história de como ela foi parar em Salem e o que acontece com ela a seguir é o fio condutor da obra.
Representação de Alfred Fredericks datada do século XIX intitulada “Tituba e as crianças”
Tituba, a bruxa de Barbados
Tituba nasce em Barbados e quando sai de lá, não sabe se volta. Encara o preconceito com a sua cor, com a sua religião, seu respeito à ancestralidade, com o seu gênero e ainda assim escolhe olhar o lado bom das pessoas, o que faz dela particularmente incrível pelos olhos de Condé: mesmo vendo e sofrendo tantas violências, sua essência segue sendo de uma ingenuidade quase infantil. Com alguns clichês, a leitura da obra é sensível tal e qual a sua personagem principal. No entanto, esse comportamento da protagonista não deve ser romantizado, ele apenas evidencia uma necessidade de sobrevivência que estava atrelada ao saber que a vida dela valia pouco quase nada para os outros. Mais de uma vez Tituba conclui que era mais fácil ser homem, ainda que negro, do que ser mulher.
O desfecho da narrativa talvez seja um pouco místico para os menos crentes e um pouco óbvio para os mais crédulos, mas dentro do contexto da história não existe desfecho mais coerente. A vida de Tituba escancara um fato incontornável: a invisibilidade da mulher ao longo da história é assustadora, mas nada se compara a invisibilidade da mulher negra na história do mundo.
Maryse Condé nasceu no Caribe e com “Eu, Tituba, bruxa negra de Salem” ganhou o New Academy Prize em 2018. O prêmio veio substituir o Nobel no ano em que ele foi cancelado por conta das denúncias de violência sexual envolvendo os integrantes da instituição. A responsável pelo prefácio é a maravilhosa Conceição Evaristo e o livro tem 250 páginas.