“Vocês não precisam de mim, vocês têm Lélia”. Foi com essa frase que, em outubro de 2019, Angela Davis parece ter recordado a uma parte do público presente o trabalho de Lélia Gonzalez. A proximidade entre as duas vem de longa data: da convivência nos Estados Unidos no final dos anos 1970, aquando do lançamento de Mulheres, raça e classe por Davis e a apresentação de “A mulher na sociedade brasileira” na Universidade da Califórnia, por Gonzalez.
Para quem olha o produto físico, Lélia parece ter deixado pouco, dois livros e um punhado de artigos, mas a potência da sua luta atravessa gerações, desde a sua atuação como professora, até a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). Lélia Gonzalez foi uma das grandes responsáveis por adicionar o marcador de raça e classe nas questões da condição da mulher brasileira, demonstrando pensar e discutir um feminismo interseccional e decolonial.
Quem é Lélia Gonzalez
Pioneira na crítica ao racismo estrutural e ao articular temas como racismo e sexismo, a ativista já falava sobre olhar colonial e a necessidade de decolonizar muito antes dos termos estarem sendo discutidos nas redes sociais.
A leitura dos seus trabalhos faz parte do pilar básico para quem deseja entender mais sobre racismo, colonização, e o “racismo à brasileira”: aquele que se volta contra os negros de forma a negar, ou denegar, as origens indígenas, latinas e africanas para estar mais perto de uma identidade europeia, num mecanismo duplo que afirma a superioridade do colonizador e a alienação do colonizado.
Mineira, aluna do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e formada em História e Filosofia Lélia é muito mais do que essas simples anotações sobre o seu trabalho. Ela participou da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e integrou a primeira formação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985. Sua ligação com a psicanálise fez com que ela pudesse pensar as suas ideias da perspectiva da formação psíquica do sujeito, como quando propõe uma analogia entre a condição de infante e a condição das mulheres e das pessoas não-brancas, que não falam, mas são faladas por um sistema que retira a humanidade delas, a condição de sujeito e as infantiliza.
O trabalho de Lélia será reeditado pela Zahar, que está trabalhando na recuperação e organização da sua obra. Em setembro a editora se prepara para lançar “Por um Feminismo Afro-Latino-Americano”, uma coletânea que reúne quase toda a produção da autora, entre ensaios, artigos e entrevistas. De acordo com a professora Flávia Rios, professora da UFF, alguns dos materiais estavam em bibliotecas estrangeiras e nunca foram publicados em português.